Roupas com pedrarias, sorriso largo, beleza, garbo e desenvoltura: as balizas são personagens fundamentais nos desfiles cívicos e fazem a festa do público no 2 de Julho. Após enfrentar dois anos de pandemia, os eventos que celebram a Independência da Bahia por todo o estado contarão com 22 fanfarras e bandas escolares da rede estadual de ensino, com a participação de 1.200 estudantes. Todas as fanfarras possuem balizas.
Não há estudos específicos sobre as balizas nas festas cívicas baianas e nem marco histórico definido, mas é certo que essas figuras representam a nossa cultura. A elas, cabe se apresentar corporalmente de acordo com as músicas tocadas pela banda ou fanfarra. Na sua movimentação estão elementos de dança, movimentos acrobáticos e ginásticos, utilizando ou não instrumentos como fita, bambolê e bastão, entre outros.
Segundo o antropólogo e museólogo Vinícius Zacarias, existem espetáculos parecidos ao redor do mundo: “Por exemplo, em Nova Orleans, no estado da Louisiana, e em Jackson, no Mississipi, nos Estados Unidos, existe a tradição das fanfarras ou bandas marciais de competição integradas às faculdades historicamente negras”, explica. As balizas do Tio Sam se valem do estilo de dança J-setting, popularizado por Beyoncé no show histórico do Festival Coachella de 2018.
Com pitadas de animadora de plateia, ginasta olímpica, bailarina e musa pop, são as únicas integrantes da fanfarra (além do regente) que podem circular livremente por todas as alas. O poder! Por isso, há quem, desde muito cedo, se encante com o maravilhoso mundo do balizamento. É o caso da pequena Késsia Fernanda Silva Santos, 8 anos, baliza desde os 6.
Laila é veterana em desfiles, mas sempre sente um friozinho na barriga (Foto: Paula Fróes/CORREIO) |
“Ser baliza é uma coisa massa, eu adoro. A gente dança, cria passos, faz projetos juntas e umas ajudam as outras quando se perde na coreografia”, diz a aluna da Escola Municipal Vila Vicentina, na Liberdade.
Vestida com roupa do corpo musical da fanfarra da Escola Municipal Pirajá da Silva (Liberdade), Rebeca Vitória Vieira Lima Nascimento faz questão de contar que também é baliza. E das mais experientes: já são seis anos no ofício. “Eu via na televisão e dizia para minha mãe que queria muito balizar. No momento do desfile, estou ali para mostrar meus talentos, porque também canto e danço”, ressalta, com brilho nos olhos.
Esse brilho chamou a atenção da irmã, Mikaele Vieira Lima Nascimento, 9, também seduzida pelo balizamento. “Quero ser baliza até ficar velha”, avisa Mikaele, não menos empolgada.
Outras duas irmãs também são unidas por essa arte. Clara Vitória Sá Barros dos Santos, 11, e Raíssa Sá Barros dos Santos, 9, vão enfrentar juntas a primeira vez um desfile cívico. “Nunca me apresentei no 2 de Julho, estou muito nervosa, mas vou dar o meu melhor”, avisa Clara. “Acho que vai dar tudo certo”, estimula Raíssa.
Com 17 anos e há cinco inserida no contexto das balizas, Laila Monique Neri Araújo, do Colégio Estadual Desembargador Pedro Ribeiro, de São Caetano, pode ser considerada uma veterana. Já participou de desfiles do 2 de Julho e do 7 de Setembro, mas isso não significa que finja costume:
“Dias antes das apresentações, fico nervosa, ansiosa. Hoje, nem consegui dormir”, entrega Laila, que é baliza solo de sua escola. A jovem, que fazia balé e adora dançar ao som da cantora australiana Sia, costuma treinar sozinha, em casa. Aliás, como a maioria das balizas e balizadores.
Uma das grandes incentivadoras das meninas é Zélia Regina Rocha, que já passou por diversas escolas e agora é instrutora da Fanfarra do Centro Estadual de Educação Profissional em Gestão, Negócios e Turismo (CEEP) Luiz Navarro de Brito, na Lapinha. Ela atua na área desde 1985 e é responsável por revelar talentos. Para ser baliza, Zélia Regina afirma que, antes de tudo, é necessário que as meninas queiram:
Diana Souza lutou contra proibições e preconceitos (Foto: Paula Fróes/CORREIO) |
“Elas precisam ter, a princípio, vontade de estar ali e, aos poucos, vão se desenvolvendo. Sem falar no traje e equipamentos”. Segundo a instrutora, o balizamento ensina a ter disciplina e espírito de coletividade: “Cada item da fanfarra ou banda contribui para enriquecer o trabalho. As balizas aprendem que os seus movimentos dependem dos outros”.
Quem instigou Luise Mirella, 15, a balizar, foi Valdineia Mendes Souza, coordenadora da fanfarra do Colégio Estadual Ruben Dario, na Avenida San Martin. A garota tímida, que há dois anos faz ginástica rítmica, encontrou ali uma forma de empoderamento.
“Gosto de dançar, de cantar, de me apresentar e quando entrei na fanfarra, tive a oportunidade de me expressar artisticamente”, conta.
Superação
“Eu saía escondida de casa, porque meu pai não me queria em fanfarra. Quando tinha viagem, dormia embaixo da cama, porque ele me procurava com um laço. Uma vez, me pegou na porta da casa do vizinho e, antes de eu entrar, jogou o laço e me arrastou. Eu apanhava, apanhava… Mas nada disso me impediu de crescer”. O depoimento comovente de Diana Souza está no documentário ‘Balizando o Dois de Julho’, de 2019, dirigido por Fabíola Aquino e Marcio Lima.
“Com essas histórias de vida, pudemos produzir um documentário que não mostra apenas um recorte do desfile cívico do Dois de Julho; ele evidencia e denuncia o quanto ainda precisamos evoluir no debate sobre diversidade sexual, principalmente, mas também sobre racismo, machismo, intolerância religiosa, entre outros”, explica Marcio Lima.
Nascida em Dias D´Ávila, Região Metropolitana de Salvador, Diana é uma baliza transgênero. Ela começou a se interessar pela arte do balizamento aos 10 anos e não parou mais. O trajeto, assim como o de toda pessoa que escapa da heteronormatividade, não foi fácil. Além da não-aceitação do pai, Diana enfrentou muito preconceito fora de casa também, como nas vezes em que foi desclassificada de concursos por ser trans.
O antropólogo e museólogo Vinícius Zacarias afirma que as mulheres transgênero são as que enfrentam mais dificuldade nesse meio: “Principalmente quando estão disputando campeonatos que têm categorias de julgamento com divisão de gênero bem estabelecidas. Esse é o tipo de conflito que existe até nas Olimpíadas, no tratamento das atletas trans. Nas fanfarras não seria diferente”.
Luise Mirella, de 15 anos, encontrou o empoderamento como baliza (Foto: Paula Fróes/CORREIO) |
A primeira oportunidade de Diana Souza aconteceu em Salvador, na Fanfarra Império, de Periperi. Em seguida, vieram muitos concursos e festivais municipais e estaduais. Aos 38 anos, ela se considera realizada. Além de sustentar a família e ter feito as pazes com o pai – “Hoje, ele prestigia todos os meus eventos, nossa relação é de amor e carinho” -, Diana coordena o projeto social Magia da Juventude, que tem como objetivo levar a dança para crianças e adolescentes das comunidades de Dias D´Ávila.
Os alunos, certamente, vão aclamar a educadora no desfile da Independência:
“Balizar no 2 de Julho, pra mim, é uma honra, uma satisfação, um momento muito especial, principalmente quando a gente passa por pontos estratégicos, onde as pessoas aplaudem muito e demonstram carinho e felicidade. Aquilo ali nos contagia, faz com que a gente se veja como uma pessoa importante mesmo. É surreal e magnífico”, enfatiza Diana.
Orgulho
Um dos locais estratégicos do 2 de Julho é o Beco do Rosário, ponto de encontro da comunidade LGBTQIA+. Em seu doutorado em Estudos Étnicos pela Universidade Federal da Bahia (Ufba), Vinícius Zacarias, que também já foi músico de fanfarra no ensino médio, estuda o lugar como espaço de afirmação e resistência.
“As comemorações do 2 de Julho na Bahia, por si só, já são um ato de ironia nacionalista, criado e propagado com este propósito, ao longo da história. As balizas, ou melhor, os ‘viados de fanfarra’ (conceito guarda-chuva que se refere a estes atores), são apenas um índice deste campo frutífero de produção cultural”, explica.
Gabriel Vilas Boas Borges Aragão sentiu-se atraído pelo brilho das roupas das balizas aos 11 anos. No primeiro desfile, foi apedrejado.
“Uns meninos atiraram um monte de brita em mim, porque queriam ver uma baliza mulher. Foi horrível, mas eu desfilei igual ou até melhor que as meninas. Sempre me empenhei em treinar pra me destacar, me colocar no mesmo nível”, conta.
Rodrigo de Oliveira quer espaço para os balizadores também nos concursos (Foto: Paula Fróes/CORREIO) |
Aos 26 anos, Gabriel é professor de educação física, ginástica rítmica, jazz dance e dança afro contemporânea, e um dos profissionais mais requisitados da área, tanto para balizar quanto para ser jurado de concursos. Ele foi um dos que abriram os caminhos para os rapazes que vieram depois.
“Os balizadores são valorizados hoje em dia. Antigamente não era assim. A gente tinha no regulamento que o baliza masculino tinha que se portar como homem, usar roupa de homem, demonstrar a masculinidade. E aí eu me pergunto: que masculino é esse que a gente tinha que mostrar, se os balizadores, em sua maioria, são gays? Seria você fingir ser o que não é? Deixar de ser livre?”, questiona.
Ver Gabriel em ação em um desfile do 2 de Julho, em 2014, fez Rodrigo de Oliveira dos Santos, 19, querer balizar. “Reconheço que foi difícil e os que vieram antes lutaram muito pra gente ter essa oportunidade hoje”, diz o estudante do Colégio Estadual Ruben Dario.
Ele destaca, porém, que ainda existe preconceito, sobretudo nos concursos intercolegiais, onde os balizadores não podem concorrer.
“A escola, que deveria ser espaço de inclusão, nos exclui. Estamos ali só de enfeite. Todo esforço, dedicação, figurino, não vale de nada. Apenas as meninas são julgadas. Não tem explicação para isso, a não ser homofobia”, acredita
Mas, Rodrigo se mantém firme em seu propósito, com o apoio da banda e da família: “O que me atraiu nesse universo das balizas é que a gente, que é da comunidade LGBT, tem mais liberdade de se expressar nesse setor. Pra mim, é uma honra fazer parte”.