A EDUCAÇÃO PÚBLICA ESTÁ EM XEQUE

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Estado corta investimentos em um sistema já sucateado, enquanto surgem propostas que podem prejudicar ainda mais o desenvolvimento da população mais pobre: Reforma do Ensino Médio, Escola sem Partido, terceirização e militarização. Como educadores e agentes culturais das quebradas resistem e apontam alternativas?

30 anos, 4 meses e cinco dias. Esse foi o período que o professor Edson Moita Rodrigues coordenou a Banda Marcial da EMEF João de Deus Cardoso de Mello, no Jordanópolis, Extremo Sul de São Paulo. Mas no final de 2017, a gestão do então prefeito de São Paulo João Doria exonerou todos os professores de bandas e fanfarras da rede municipal.

Moita, como era mais conhecido, tentou seguir de forma voluntária com o trabalho de uma das bandas escolares mais representativas da cidade, porém foi impedido pela direção até mesmo de retirar seus instrumentos. Em maio deste ano, anunciou o fim do trabalho. Em julho, foi encontrado morto em casa por conta de um infarto. Pessoas próximas dizem que foi tristeza. De luto, milhares de alunos, ex-alunos, colegas de profissão e toda uma comunidade que perderam a banda e o professor.

O caso ilustra o paradoxo da educação no Brasil. Enquanto políticos, empresários e a sociedade em geral demonstram consenso quando apontam a educação como prioridade e “caminho para o futuro do País”, a prática revela o contrário: em dezembro de 2016, o governo de Michel Temer sancionou a proposta de emenda constitucional (PEC) do teto dos gastos, também conhecida como “PEC do fim do mundo”, que congela por 20 anos o aumento de investimentos em áreas como programas sociais, saúde e educação com a justificativa de equilibrar as contas públicas.

No Barragem (Parelheiros): escola pegou fogo em 2014 e comunidade aguarda reconstrução. Novo prédio deve ser entregue apenas em 2019

Somem-se a essa medida os velhos problemas estruturais do sistema público de ensino, como as salas superlotadas, a infraestrutura defasada, a falta de professores e a precarização de trabalhadores, a insegurança e a evasão escolar.

“A obrigatoriedade de acesso não garantiu o direito a uma educação democrática ou qualificada no sentido de potencializar a formação de crianças e jovens, uma vez que as políticas de acesso sequer são acompanhadas da construção de escolas, infraestrutura necessária para atender essa demanda, e da valorização dos docentes”, nota Marcelo Costa Sena, morador da Ilha do Bororé com 25 anos de magistério, e que atualmente é professor e coordenador pedagógico em duas escolas do Grajaú. “Temos uma legislação educacional que respalda o direito a uma educação que reconheça as potencialidades de cada cidadão, contudo que ainda não se efetivou”, continua.

Confira abaixo a vídeo-reportagem de Evelyn Arruda e Wilson Oliveira sobre a percepção de estudantes de escolas públicas do Extremo Sul:

Há 08 anos na educação pública, Bruno Magalhães ressalta que apesar das deficiências a escola é um espaço importante de debate e conhecimento encravado em territórios abandonados pelo Estado. “O acesso à uma formação científica e cultural de qualidade permite o aprofundamento da leitura de mundo da população como um todo, desenvolvendo os processos sociais”, observa o professor de uma escola municipal localizada no Grajaú.

Com 11 escolas no currículo de 12 anos de atuação, o professor Paulo Rudo lembra que a educação pública é um direito conquistado com suor e luta. “A escola tem que ser pública porque senão vai ficar exclusiva a quem tem dinheiro”, diz ele, que atualmente leciona em uma escola no Jardim Monte Verde, um dos bairros fincados em penínsulas da represa Billings. Nesse período, ele nota alguns avanços, como a obrigatoriedade do ensino da História e Cultura Africana e Afrobrasileira e dos Povos Indígenas, regulamentados pelas leis 10.639 de 2003 e 11.645 de 2008. Por outro lado, ainda falta formação nessas temáticas, apesar do esforço de alguns professores.

Mas o que tira mais horas de sono de trabalhadoras e trabalhadores da educação são ideias recentes que ganham força no atual cenário de retrocesso.

Vende-se?

Joana* acredita no poder de transformação da educação pública. Ninguém disse que seria fácil, mas parece que tá mais difícil para a jovem de 24 anos, cujo nome verdadeiro foi alterado para preservar sua identidade.

Moradora de Parelheiros, no Extremo Sul de São Paulo, começou a trabalhar no sistema há cinco anos como agente escolar – a famosa “tia da escola”. E há apenas um ano, formada em História, começou a dar aulas. Para sua surpresa, logo no início do ano ela descobriu que a escola estadual onde trabalhava no Jardim Noronha (distrito do Grajaú) estava entre as 122 previstas para serem “privatizadas” pelo Governo do Estado.

Panfleto lista escolas estaduais do Extremo Sul previstas para adotarem o CIS – Contrato de Impacto Social

Esse plano, suspenso com a justificativa de ampliar o debate sobre o assunto com a comunidade escolar, deve ser retomado somente na próxima gestão. Ele se trata da implantação de uma modalidade de parceria público-privada classificada como Contrato de Impacto Social (CIS), em que o Estado contrata empresas privadas para entrega de serviços públicos e só paga se os resultados do serviço forem positivos. Nesse caso, é considerado positivo quando se constatar a diminuição da evasão e reprovação escolar, sem reduzir a aprendizagem. A checagem seria baseada na chamada Avaliação de Aprendizagem em Processo (AAP), que acompanha o nível de conhecimento do aluno por bimestre e no Sistema de Avaliação de Rendimento Escolar do Estado de São Paulo (SARESP), feita no final do ano letivo, ambos já adotados no sistema atual.

Enquanto isso, o Método de Melhoria de Resultados (MMR) já é uma realidade desde 2017 nas escolas estaduais. A Secretaria da Educação implantou em todas as 1.082 escolas de 13 diretorias de ensino da cidade de São Paulo a proposta de gestão escolar baseada em resultados, que prevê o envolvimento de toda a comunidade escolar na realização de um diagnóstico do aprendizado dos alunos, também baseada na AAP, definição de um plano de ação pedagógica e uma avaliação de melhoria desse desempenho. O problema aqui é que o programa não leva em consideração a estrutura disponível na escola, a falta de recursos pedagógicos para essas melhorias e, menos ainda, um suporte para a comunidade escolar implantar da melhor forma as possibilidades de melhoria. O resultado é avaliado com base na melhoria da nota do Índice de Desenvolvimento da Educação de São Paulo (Idesp) e leva em consideração, entre outras coisas, apenas o desempenho nas disciplinas de Português e Matemática.

Cristiane Jaxuka: bonecas negras e indígenas para combater racismo desde a infância (Foto: Thiago Borges / Periferia em Movimento)

A terceirização em si não necessariamente é uma novidade na educação. Na rede estadual, os funcionários da limpeza e da cozinha são contratados por uma empresa externa desde 2008,na gestão de José Serra à frente do Estado de São Paulo. E para combater a fila por vagas nas creches (CEIs – Centros de Educação Infantil), desde 2011 a Prefeitura investe em convênios com entidades do terceiro setor. De acordo com o Censo Escolar 2014, mais da metade das crianças matriculadas já frequentavam CEIs nesse formato – quase 164 mil. De acordo com o Plano de Metas da Prefeitura, até 2020, pretende-se “expandir em 30%, as matrículas em creches”, o que equivale a 85,5 mil vagas.

Para a professora de educação infantil Cristiane Jaxuka, de 33 anos, o prejuízo é nítido. “O governo tem pensado na educação infantil para atender a demanda, então matricula os moleques, garante cuidados básicos, mas não dá condições plenas para que ele se desenvolva”, denuncia ela, que está há 12 anos na educação infantil. Atualmente, Cristiane trabalha em um CEI e uma EMEI no Grajaú administrados diretamente pela Secretaria Municipal da Educação. Mas ela também já passou por creches terceirizadas, com jornada de 09 horas por dia e sem espaço para as crianças.

“São estruturas que vão engessando nossos corpos. Se a criança aprende por meio do brincar, ela precisa de espaço, de recursos, de mato, de terra, experimentar muitas coisas. E como ela vai fazer isso em um prédio que não tem parque, não tem quintal, nem tem condições de recebê-la? É uma violação de direito”, ressalta Cristiane.

Confira abaixo a distribuição das escolas e outras unidades de ensino pela capital paulista e, no destaque, na região Extremo Sul (Mapeamento: Mariana Sousa)

Agora, o que é uma medida localizada pode virar regra para toda a educação básica e no território nacional como um todo. Homologada pelo Ministério da Educação (MEC) no fim do ano passado, a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) estabelece conteúdos mínimos que deverão ser adotados em todas as escolas do país. Após aprovar as mudanças para os Ensinos Infantil e Fundamental, o governo de Michel Temer corre para promover alterações do Ensino Médio.

A BNCC endossa a Reforma do Ensino Médio aprovada em fevereiro de 2017. O currículo é organizado por áreas de conhecimento: linguagens, matemática, ciências da natureza e ciências humanas. Apenas português e matemática são disciplinas obrigatórias nos três anos. Além disso, a carga horária será reduzida para 1.800 horas – 60% da atual. O tempo restante deve ser dedicado ao aprofundamento no itinerário formativo de escolha do estudante, inclusive com oferta de ensino à distância. O conselheiro Cesar Callegari deixou o cargo de coordenador da comissão da BNCC por considerar que a proposta aprofunda os problemas do Ensino Médio em vez de superá-los. Segundo entidades de classe, isso abre caminho para a privatização da educação e estimula a demissão em massa de trabalhadores da área.

“São reflexos de estratégias antigas: precarizar serviços públicos a fim de que empresas privadas as salvem de suas mazelas. Um discurso em favor da educação, quando na verdade o que está em jogo mesmo é o lucro”, observa a professora Joana.

Mordaça e linha dura

E se o Poder Executivo pode deixar a situação mais precária apesar do discurso de modernização, pelo Poder Legislativo a proposta é “amordaçar” docentes com a “Escola sem Partido”. O Projeto de Lei (PL 7180/14) propõe incluir tópicos à Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), de 1996,  e diz respeito diretamente a conduta das professoras e professores dentro da sala de aula.

Uma das mudanças diz respeito ao acréscimo do inciso no artigo 3o da Lei que diz: “Respeito às crenças religiosas e às convicções morais, filosóficas e políticas dos alunos, de seus pais ou responsáveis, tendo os valores de ordem familiar precedência sobre a educação escolar nos aspectos relacionados à educação moral, sexual e religiosa”. O projeto ainda prevê tornar obrigatória a afixação em todas as salas de aula do ensino fundamental e médio de um cartaz com seis deveres dos professores para que lecionem sem influências pessoais ideológicas. Além disso, fala que “a educação não desenvolverá políticas de ensino, nem adotará currículo escolar, disciplinas obrigatórias, nem mesmo de forma complementar ou facultativa, que tendam a aplicar a ideologia de gênero, o termo ‘gênero’ ou ‘orientação sexual’”.

“O projeto reproduz uma educação formadora de pessoas-objeto dos interesses dominantes. Nesse sentido, a liberdade de consciência dos estudantes está ameaçada por uma ideologia que nega sua participação ativa no mundo e ignora a pluralidade de opiniões e experiências. Isso viola o direito à educação e reinstala um regime de exceção”, aponta em nota o Movimento de Educadores Organizados pela Base (MEOB), movimento independente que reúne trabalhadores da educação.

“Ao impedir de falar de pautas de diversidade, já se toma um partido. Se você não fala de comunismo, de anarquismo, dos levantes populares, então você não fala da história”, observa Paulo Rudo. “O trabalho do professor não é doutrinar ou apresentar verdades prontas, mas sim promover o diálogo e a reflexão politicamente crítica”, complementa Joana, para quem essa proposta tem o objetivo apenas de silenciar qualquer discurso contrário ao que está no controle.

Foto: Thiago Borges / Periferia em Movimento
Mariana Salomão: graffiti como ferramenta pedagógica (Foto: Thiago Borges / Periferia em Movimento)

Para a artista e professora Mariana Salomão, que está há 15 anos na rede municipal, isso é contraditório ao não permitir a abordagem sobre gênero, por exemplo, uma vez que “as escolas ainda permitem que orações e comemorações de eventos cristãos religiosos ocorram dentro no ambiente escolar, e não combatem intolerância com as religiões de matriz africana”.

Fora isso, a militarização das escolas é uma realidade frequente: grades, trancas e cercas de arames farpados fazem parte da estética escolar, enquanto pipocam denúncias de direções que chamam policiais militares para resolver conflitos internos. E em lugares como Goiás, em um processo iniciado em 2013, a Polícia Militar já controla diretamente 48 escolas estaduais. Na prática, os militares são responsáveis por toda a administração da escola. A parte pedagógica, professores e metodologia de ensino, continua sob responsabilidade da Secretaria de Educação.

“Isso perpetua um propósito da educação estar a serviço para o controle social, a obediência”, aponta Marcelo Costa Sena. “A educação precisa de liberdade. O militarismo educa para o exército, para ser duro, e exclui toda sua parte humana”, teme Paulo Rudo.

Ocupar e resistir

Diante de tantas ameaças à educação pública, que parecem vir de rolo compressor, há saídas para preservar esse direito universal que ainda não é efetivo?

“Nosso jeito de resistir é ocupar esses espaços e falar de nós pros nossos, mostrando outras possibilidades pra eles também”, acredita Cristiane Jaxuka, que começou a confeccionar bonecas pretas e indígenas para gerar identificação entre seus alunos e combater o racismo desde a infância. Confira aqui.

Nois já tá fervendo: ato de estudantes secundaristas contra reorganização escolar em 2015

Outro exemplo dessa resistência foi o movimento de secundaristas iniciado no final de 2015, no Estado de São Paulo, contra as propostas de reorganização do ex-governador Geraldo Alckmin, que pretendia fechar centenas de escolas. A pressão de estudantes viralizou e impediu a mudança – ao menos, até encontrar uma nova estratégia.

Para Marcelo Costa Sena, esse é o caminho. “A quebrada precisa se apropriar da educação pública, conhecer mais sobre a escola, desenhar e fazer a escola que queremos para ontem, para barrar todos os descasos e interesses de considerar a educação um fracasso”, reforça. Paulo Rudo complementa: “a educação pública tem que ser mais pública. Ou seja: não pode ser um elefante branco na minha quebrada”.

Bruno Magalhães observa que essa insistência em manter o espírito comunitário das comunidades, a existência de diversos projetos de escolas e coletivos que rompem com o currículo tradicional, os cursinhos populares e outras iniciativas são fundamentais . “São forças que contribuem para a defesa da educação pública”, diz.

Mariana Salomão partiu de um incômodo pessoal para iniciar um projeto de graffiti na escola onde atua. “Faço com que a cultura Hip Hop seja a força motriz para discutir essa tal ‘crise’ dos processos ultrapassados pedagógicos, tentando trazer para dentro dos muros da escola o repertório cultural da comunidade”, diz ela. Como resultado, crianças e adolescentes passaram a ver a escola de outra forma em suas vidas, rompendo muros, cadeados e barreiras invisíveis, como os preconceitos sociais e o racismo.

Educadora social no Centro de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente – CEDECA Interlagos, Tatiana Rodrigues coordena o Projeto RUAS, que atua em territórios do Extremo Sul e tem como um dos objetivos fortalecer os grêmios estudantis para que sejam combativos e de fato, representem os alunos e possam dialogar sobre as demandas das escolas junto à direção e com os professores. “Junto a isso, discutimos a violência comunitária urbana e de como essa violência se dá dentro da escola, entendendo que, nesses dois anos de projeto, a gente percebe que a escola é o maior violador de direitos”, aponta.

Foto: Divulgação
Marcio Ricardo: mais de 700 palestras com crianças e adolescentes (Foto: Divulgação)

O rapper e escritor Marcio Ricardo da Silva, de 27 anos, faz um movimento de fora para dentro das escolas. Em sete anos de ativismo cultural, ele já deu mais de 700 palestras em 300 locais diferentes – em sua maioria, escolas públicas. “Meu trabalho é levar a informação por meio do diálogo, ajudar no crescimento intelectual e no protagonismo de nossos jovens. Através dessas trocas de ideia que eu faço hoje, coloco o jovem de cara com ele mesmo, fazendo pensar ‘poxa, agora é comigo’”, explica.

Sem microfone, ele conta sua trajetória em forma de standup e toca em pontos como respeito, amor, responsabilidade e deveres. Márcio ilustra a importância do seu trabalho para ampliar possibilidades para os jovens com um depoimento que recebeu de um estudante: “Tio, tio, vou parar a cocaína para fazer poesia igual você”.

Esta reportagem faz parte do projeto #NoCentroDaPauta, uma realização dos coletivos Alma Preta, Casa no Meio do Mundo, Desenrola e Não me Enrola, Imargem, Historiorama, Periferia em Movimento e TV Grajaú, com patrocínio da Fundação Tide Setubal.

Cerca de 30 reportagens serão publicadas até o final de outubro com assuntos de interesses da população das periferias de São Paulo em ano eleitoral. Acompanhe os sites e as redes sociais dos coletivos e não perca nada!